Opinião

“Emparedado”, eu vi!

Eu vi, com os próprios olhos, o simbolismo de Cruz e Sousa, na noite de quinta, 21 de novembro de 2007, em Joinville. Nossa! O que foi aquilo? Eu fui! Eu vi!
Quando a gente sai do teatro com uma imagem na cabeça e ela teima em reaparecer o tempo todo no dia seguinte, é porque o espetáculo foi bom! E, mais do que cognitiva, essa imagem virou emoção. Por isso, escrevo. Fiquei emparedado, entre a emoção e a vontade de contar a outros o que eu vi!
Basta conhecer um pouco mais a obra a vida de Cruz e Sousa e, provavelmente, vá nascer uma certa devoção pelo trabalho dele, e para quem mora em Santa Catarina, há ainda um relação quase que “paroquial”, pois o poeta nasceu aqui! Acho que Cruz e Sousa, o maior poeta simbolista brasileiro, tem uma poesia marcante porque ela nos leva, além do som, às imagens. Lembro bem de “Broquéis”, livro dele de onde colhi alguns poemas e com mais profundidade, tive a oportunidade de decupá-los nas aulas de Teoria da Literatura há algum tempo. Lembro de como foi marcante ver o encadeamento fascinante das palavras, dos fonemas e as imagens que iam se formando mentalmente enquanto lia os poemas. Ainda hoje, vejo as “... macabras piruetas d'aço...” daquele palhaço em “Acrobata da Dor”, de Broqueis. E eu não conhecia “Emparedado”! E fiz questão de não ler nada a respeito – mesmo dando uma coceirinha no dedo pra digitar alguma biblioteca no google -, porque, afinal, eu queria ir ao teatro para ver um texto de Cruz e Sousa no teatro, estava curioso e empolgado com isso! Claro, porque por mais que se admire um clássico da literatura, qualquer mortal que ande por essas enlouquecidas paragens nesse começo dos 2000 se pergunta: putz, como é que vai ser? E foi! Foi surpreendente. O teatro estava lotado! Foi num teatro de bolso, que se chama Galpão de Teatro e fica nas antigas instalações de uma cervejaria da Antarctica e que se chama Cidadela Cultural, em Joinville – Santa Catarina. Um espaço alternativo, ainda com cadeiras de plástico (mas com almofadinhas!), singelo, mas bem montado, e a gente adora, porque é o nosso espaço de aconchego cultural!
Quando eu vi no palco uma pequena plataforma branca de pouco mais de 1 metro altura e de 1 metro quadrado de largura, com uma escrivaninha alta e estreita na lateral, eu fiquei pensando: pronto! Vai ter sobe e desce! Logo atrás desse móvel branco tinham umas tiras enormes de pano branco que vinham do teto, bem alto! E com tiras de tamanhos diferentes, de um tecido bonito! Numa das laterais do palco, perto do proscênio, uns baús com instrumentos de percussão, pois a trilha é executada ao vivo. E começou! Aquela pequena plataforma branca era na verdade, o palco. E foi ali, só ali em cima, nessa pequena plataforma branca, que eu vi o tempo todo, Cruz e Sousa. E vi gigante!!! Iluminado em branco, em várias cores, vários ritmos, vários instrumentos musicais, em movimento e expressão!
Já não me importava mais o texto escrito e na oralidade. Tinham muitos outros textos ali, viscerais e em outras linguagens. E, justamente, essa sobreposição, essa articulação textual, cênica, fez com que cada momento fosse de intensa percepção. Aquele pano branco hora servindo de suporte, hora sendo simplesmente branco, o ator em si, a obra se refazendo em múltiplas, várias narrativas em uma só, em tempos distintos e ao mesmo tempo. A marcação da trilha, a expressão facial do ator, a expressão corporal do ator, a voz do ator. Cada coisa no seu momento, com sua intensidade e se entrelaçando, com uma sutileza e generosidade tão instigantes, que até a dor assumiu a sua mais leve nuance e passou pelo palco como algo que embeleza e não agride.
Robson Benta não declama um poema, não é o narrador de uma história, apenas. O cenário, a música, a iluminação, não foram coadjuvantes à disposição da atuação. Foi tudo uma coisa só! O que vi, já não era mais o ator interpretando um personagem, até porque, Cruz e Sousa existiu de verdade, nessa noite de quinta-feira, 21 de novembro de 2007, em Joinville.
Sem mais pedras, nem parede! E eu vi!
[Pierre Porto S.]

▪ “Emparedado”, de Cruz e Sousa, narra a saga de um homem e poeta que se vê emparedado pelo preconceito de ser nego e artista. A peça, montada pela Cia. Joinvilense de Teatro, é projeto contemplado no Edital de Apoio às Artes 2007 da Fundação Cultural de Joinville. A direção geral e produção são de Caroline Liza Schultz, o ator/intérprete é Robson Benta, a dramaturgia e direção de cena são de Borges de Garuva e a música de Guilhermo Santiago e Borges de Garuva, cenotécnica de Marcelo de Mello e técnica de Robson Luis e Cristiano Nagel. O espetáculo estreou em Joinville, Santa Catarina, dias 21 e 22 de novembro de 2007.
A montagem marcou ainda o reencontro entre o ator Robson Benta, o diretor e dramaturgo Borges de Garuva e o músico-instrumentista Guilhermo Santiago, que juntos, também marcaram época no Teatro de Joinville na década de 90 e que celebraram a oportunidade de um novo projeto juntos, através da Cia. Joinvilense de Teatro.


ResenhaA vida na porta da geladeira
Por: Pierre Porto Silveira
Redator, Editor de Cultura e Colaborador do Prolij



“A vida na porta da geladeira”, livro publicado pela WMF Martins Fontes (2009), de título original: “Life on the refrigerator door”, 226 páginas, romance de estreia da inglesa Alice Kuipers, tem uma narrativa surpreendente.

A história se estabelece na troca incessante de bilhetes entre uma mãe, médica, ocupadíssima, e sua filha adolescente, que moram juntas, mas que muito pouco se veem.
Quando a gente imagina uma história contada por bilhetes fixados diariamente na porta da geladeira de casa, o primeiro sentimento é o de curiosidade. E, o segundo, é o de desconfiança. Pelo menos, comigo, foi assim. Logo que li a orelha do livro e o folhei rapidamente, pensei o quanto poderia ser monótona essa troca de bilhetes. Mas não é!
Não há narrador, não há personagens secundários e ambas são protagonistas. O set da narrativa, arrisco aqui, é o próprio relacionamento entre as duas, é a psique entremeada ao diálogo. E, o diálogo, por si, faz o papel de narrador, uma vez que a autora consegue com sutileza, imprimir ritmo, dramaticidade e tensão, às vezes numa simples mudança de enunciado do bilhete, como, ao invés de: “Claire”; para: “Pobre, Claire ”. Ou nas frases de despedida nos bilhetes da filha: “Com amor, sua filhinha”. Quando falo do diálogo, como narrador, é porque essa representação das conversas entre as duas, que não se veem, mas parecem tão perto uma da outra, nos dá a sensação de uma terceira voz na narrativa.
“A vida na porta da geladeira” surpreende na medida em que Kuipers consegue, entre listas de compras e outros avisos tão cotidianos escritos nos bilhetes à filha, alinhar uma relação de cumplicidade entre ambas, com muita intensidade, apesar da ausência. A narrativa é um jogo, com constância, e um final avassalador, em que, talvez, ninguém perca nessa relação tão distante. Afinal, depois da tragédia, a filha ainda aguarda um possível bilhete da mãe na porta da geladeira. Quem sabe!

Título: A vida na porta da geladeira

Autor: Alice Kuipers
Editora: WMF Martins Fontes (2009)
Número de Páginas: 226 páginas


Pierre Porto Silveira
Redator, Editor de Cultura e Colaborador do Prolij